6.6.08

(ressussitando os mortos, por falta de tempo para viver)

Assembléia

Sentou ao seu lado, pernas cruzadas. Com o rabo dos olhos tentava uma atenção gratuita, sem a culpa de tê-la chamado. Ela devia conhecer a técnica. Não olhou. O chão esquentava enquanto a assembléia corria e as palavras saiam, passavam pelo martelo de seu ouvido sem lhe falar. Vez ou outra lembrava de suas contas, mas era ela, a mulher de sua vida, ali ao seu lado, sua principal atração. Um toque de despropósito. Normal. Seu joelho roçou o dele, nada demais. Não é um sinal. Não foi por querer. "Rubras noites perseguem meus pesadelos diários", pensou em sussurrar algo do gênero, um verso em prosa, qualquer coisa que impressionasse naturalmente. E assistia a assembléia decidir a vida que nem mais queria. Não se não estivesse pousado nú sobre a magra silhueta de ombros agora colados aos seus. Estava decidido, mas tomou conta da situação a mulher. Poderia, se quisesse, levantar, com calma, calar o falatório, pegá-lo com violência e impor-lhe um tango perante os embasbacados expectadores. Poderia — ela sim — pousar-lhe sobre os ombros uma nudez sem pudor, e guiá-lo pela vergonha de ser dominado. Poderia tê-lo casado sem ouvir-lhe o "sim". Poderia, mas não quis. Não quis beijá-lo nem com o rabo dos olhos. Não percebeu que era a mulher de sua vida. Cruzou também suas pernas, roçou seu joelho no dele, e pediu desculpas.

2 comentários:

Maíla Diamante disse...

Ah, esse superego terrível!

Lindíssima passagem. Acho q eu já tinha lido.

Denis Forigo disse...

Merci!

Confesso que nem sabia o que era superego quando escrevi... :)

vc deve ter lido no Morto Ataíde, é de lá.